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Utilização de instrumentos estrangeiros por psicólogos brasileiros

17/08/2012

Por Rodolfo A. M. Ambiel

A utilização de instrumentos estrangeiros por psicólogos brasileiros já foi alvo de críticas duras por parte da sociedade e dos próprios profissionais. Contudo, a preocupação com a adaptação e validação desses instrumentos para o contexto nacional tem sido crescente e com resultados bastante promissores. Nesta entrevista, a Dra. Juliane Callegaro Borsa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conta sobre sua experiência de pesquisa nessa área e destaca que, para além da adaptação, o interesse por estudos transculturais tem sido crescente, possibilitando a comparação entre indíviduos em diferentes condições. Para isso, é fundamental que os instrumentos utilizados atestem sua validade em cada um dos contextos e que seja testada e comprovada, também, sua invariância, independentemente do contexto em que forem utilizados”, defende Juliane. A seguir, a íntegra da entrevista.

 

1. No seu doutorado, você realizou um estudo de adaptação e validação transcultural de um instrumento de avaliação. Você poderia contar um pouco do trabalho e falar sobre o que motivou sua escolha por esse tema?

O interesse por investigar os comportamentos agressivos foi resultado das pesquisas que eu já vinha desenvolvendo no mestrado, na PUCRS, quando trabalhei com avaliação de problemas de comportamento e problemas emocionais de crianças. Na época, me chamou a atenção a alta prevalência de problemas de comportamento externalizantes (sobretudo os agressivos) nas crianças portoalegrenses. Ao iniciar o doutorado na UFRGS, ingressei no Grupo de Estudo, Aplicação e Pesquisa em Avaliação Psicológica GEAPAP (http://www.ufrgs.br/geapap/), coordenado pela Profa Dra. Denise Bandeira, que tem como foco a construção, validação e adaptação de instrumentos psicológicos. Ingressei no doutorado com o interesse de avaliar os comportamentos agressivos, mas me deparei com a falta de instrumentos válidos no Brasil. Em pesquisas na Internet, tive contato com o trabalho da Profa Paola Gremigni, pesquisadora da Università di Bologna, na Itália, que havia recentemente desenvolvido um instrumento para avaliar os comportamentos agressivos e reações frente à agressão entre crianças (o Questionário de Comportamentos Agressivos e Reativos entre Pares – Q-CARP). Conversando sobre meu interesse de pesquisa de doutorado, recebi a proposta de realizar o estudo de validação do Q-CARP no Brasil e, posteriormente, realizar a validação transcultural. Esta parceria resultou em uma experiência de estágio sanduíche no grupo de pesquisa da Profa Gremigni, na Università di Bologna, ocasião em que realizei as análises de dados coletados no Brasil e na Itália. Esta experiência foi muito legal, pois pude participar de outras atividades docentes, como ministrar disciplinas e cursos de estatística avançada para os alunos do curso de Psicologia da Universidade.

Vale ressaltar meu interesse pessoal (como descendente de italiana), de conhecer os aspectos culturais envolvidos nos comportamentos agressivos das crianças brasileiras e italianas. A ideia de validar um instrumento nestas duas culturas, permitindo futuras pesquisas entre Brasil e Itália, foi um dos fatores motivadores deste estudo. O projeto de doutorado foi submetido ao edital MCT/CNPq nº 70/2008 do CNPq, sendo contemplado com a bolsa de doutorado. Com auxílio do CNPq, também realizei o estágio de doutorado sanduíche pelo período de seis meses.

 

2. Ao decidir estudar um construto que ainda não conta com um instrumento para sua avaliação no Brasil, o pesquisador pode escolher por adaptar ou construir uma versão. Na sua opinião, quais as vantagens e desvantagens de ambas as tarefas?

A meu ver, a adaptação de instrumentos já existentes (e com boas evidências de validade), em detrimento da construção de uma nova medida, possui vantagens consideráveis. Ao adaptar um instrumento, o pesquisador é capaz de comparar dados obtidos em amostras de diferentes contextos culturais, permitindo uma maior equivalência e capacidade de generalização (uma vez que estes dados serão coletados por meio de um mesmo instrumento, construído a partir de uma mesma perspectiva teórica e metodológica). É crescente o interesse por estudos de caráter transcultural que permitam comparar características de indivíduos inseridos em diferentes contextos. Para isso, é fundamental que os instrumentos utilizados atestem sua validade em cada um dos contextos e que seja testada e comprovada, também, sua invariância, independentemente do contexto em que forem utilizados. Para isso, existem técnicas específicas, como a Análise Fatorial Confirmatória Multigrupo (AFCMG), o Funcionamento Diferencial do Item e o Escalonamento Multidimensional (EMD).

 

3. Quais os desafios envolvidos na construção transcultural de um instrumento?

Primeiramente, o desafio é a falta de padronização do procedimento de tradução e de adaptação. Vários são os guidelines que explicam como realizar a adaptação transcultural de instrumentos, mas parece não haver consenso quanto à melhor forma de conduzi-lo. Uma explicação para isso é a diversidade de instrumentos, destinados a públicos e contextos diferentes e que possuem estrutura e objetivos distintos, exigindo procedimentos específicos.

O que é consensual, contudo, é que o processo de adaptação vai além da mera tradução. E é aí o grande problema de muitos dos procedimentos de adaptação realizados no Brasil, que começam e terminam na tradução (ou na tradução e retrotradução do instrumento), não assegurando a adequação do conteúdo para uso na nova cultura.

Especificamente, as dificuldades frequentemente encontradas dizem respeito à qualidade das traduções. Penso que os tradutores bilingues precisam ter conhecimento da linguagem técnica, além do sólido conhecimento do idioma, permitindo uma melhor adequação dos termos traduzidos. Também percebe-se a falta da avaliação do instrumento por juízes experts e pelo público a que o instrumento se destina. Esta etapa é essencial para garantir a qualidade da estrutura e diagramação do instrumento, a clareza do rapport, a adequação dos termos, etc. (aspectos não contemplados pelos tradutores bilingues). Finalmente, outro aspecto essencial é que, ao realizar a etapa da backtranslation, se considerem possíveis mudanças quanto aos termos originais que, ao serem traduzidos deverão se adequar à nova realidade. Em outras palavras, mais que manter a equivalência literal do termo de um item, é necessário que o mesmo mantenha o mesmo sentido conceitual.

 

4.  O início da avaliação psicológica no Brasil foi marcado, em parte, pela utilização de uma grande quantidade de testes, principalmente de inteligência, que eram apenas traduzidos, sem preocupações com adaptações culturais mais profundas. Que tipos de consequências esse tipo de ação pode causar?

Parte desta questão já foi discutida na resposta anterior. A grande cilada é acreditar que a mera tradução resultará em um instrumento adequado para o uso em outro contexto. Como disse, vêem-se, no Brasil, muitas traduções equivocadas, cujos itens, ao serem traduzidos, tiveram o sentido totalmente alterado ou invertido. A falta de tradutores capacitados é um dos grandes erros. Muitas vezes um tradutor fluente no idioma não será, necessariamente, um bom tradutor de instrumentos, já que esta prática exige conhecimentos específicos, que envolvem noções técnicas acerca do construto avaliado. No Brasil, país de dimensões continentais, este aspecto é sempre complexo. Um termo compreensível em uma região pode não ser em outras. Uma expressão pode fazer sentido para um gaúcho, mas não necessariamente para um cearense ou para um mineiro. Encontrar termos adequados e compreensíveis para todos, em um país com tantas diversidades é um grande desafio.

 

5. Você teve em sua formação a experiência de fazer parte de seu doutorado na Itália. Como é por lá a realidade da adaptação de testes estrangeiros?

A prática de adaptação de instrumentos é crescente na Itália, assim como em outros países do Mundo. Penso que é uma tendência geral, tendo em vista as vantagens desta prática. Quando estive lá, tive a oportunidade de participar de outros estudos de refinamento de diferentes escalas que já haviam sido traduzidas e adaptadas na Itália (exemplo, QSG, medidas de coping, etc). Também participei como expert na avaliação de itens de instrumentos de qualidade de vida em pacientes com doença crônica (uma das áreas de investigação da Profa Gremigni). Do mesmo modo, percebi o interesse dos pesquisadores italianos em estudos de validação transcultural. Especialmente, o interesse em desenvolver estudos em parceria com o Brasil e outros países latinos.