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Processo de avaliação psicológica de condutores

23/11/2012

Por Gisele A. da Silva Alves

A nosso convite, o Prof. Dr. Fabián Marín Ruedarespondeu às questões da seção de dúvidas frequentes dessa atualização. O Prof. Dr. Fabián  é Psicólogo. Perito Examinador de Trânsito pela Universidade de Ribeirão Preto. Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade São Francisco, com área de concentração em Avaliação Psicológica. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Representante do Conselho Federal de Psicologia na Câmara Temática de Saúde e Meio Ambiente do Conselho Nacional de Trânsito, desde 2009.

 

1.      Que variáveis devem ser avaliadas no processo de avaliação psicológica de condutores e de que forma elas foram definidas?

Em relação aos aspectos que devem ser verificados no processo de avaliação psicológica de condutores, atualmente vigora a Resolução nº267 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que no seu Anexo XIII estabelece cinco grandes grupos de variáveis que devem ser avaliadas. São eles: tomada de informação, processamento de informação, tomada de decisão, comportamento e traços de personalidade. Nesse sentido, é importante destacar que a maior parte dos quesitos constantes no anexo XIII é resultante das discussões propiciadas pela Comissão Especial do Exame Psicológico criada pelo Conselho Federal de Psicologia na década de 1980, cujos integrantes eram os professores Efraim Rojas-Boccalandro, José Augusto Dela Coleta e Reinier Rozestraten, como presidente. O objetivo dessa comissão foi obter dados e critérios relacionados ao exame psicológico para condutores,e oferecer ao CONTRAN uma proposta de reformulação normativa em substituição à vigente na época.O problema é que grande parte dessa proposta foi formalizada apenas em 2008, com a publicação da Resolução nº267. Em decorrência, surgiram dificuldades sobre o entendimento do que realmente deve ser avaliado de acordo com essa resolução. Como exemplo pode-se citar a solicitação para avaliar a ‘capacidade de perceber e interpretar os estímulos fracos de intensidade ou após ofuscamento’. De fato, a solicitação só faz sentido se pensarmos no contexto no qual a comissão criada pelo CFP pensava a avaliação psicológica, ou seja, que ela deveria ser realizada principalmente por meio de simuladores e artefatos mecânicos que permitissem uma avaliação do tempo de reação, da percepção, do ofuscamento, da atenção dividida, dentre outros, sempre diante de situações e condições específicas do ‘ambiente trânsito’.

Diante desse breve panorama do que é exigido legalmente na avaliação psicológica para condutores atualmente, é que podemos passar para o que é avaliado na prática. Nos dias de hoje o processo inclui a avaliação de traços de personalidade, da atenção, da inteligência e da memória (este último construto nem sempre é avaliado, mesmo constando nas exigências atuais). Além disso, é realizada uma entrevista, sendo que em alguns estados é um roteiro padrão de perguntas previamente estabelecido. É importante dizer que esse padrão de avaliação que temos atualmente não difere muito do padrão utilizado no Brasil desde a década de 1940. A pergunta seria o porquê disso?

Para responder essa questão é importante voltar até 1900, quando o médico italiano Patrizi mencionou pela primeira vez a necessidade de avaliar psicologicamente os motoristas, principalmente no que se referia à ‘constância da atenção’, pois nessa época já se entendia como equivocado pensar a condução de veículos automotores como um processo automático. Posteriormente, outros autores deram continuidade ao entendimento de que a dimensão psíquica do condutor seria indicada como possível fonte de acidentes, dentre eles Loewenthal em 1910 e Münsterberg em 1914 - este último construiu o primeiro teste de aptidão para condutores na Universidade de Harvard. Nos anos seguintes surgiram as primeiras reuniões e eventos sobre transporte, trânsito e psicologia, sendo que a psicometria estava muito presente nas discussões sobre a avaliação dos condutores. Aliado a isso, foi de extrema importância o papel de Emílio Mira y López na avaliação de motoristas, quando na década de 1930, na Espanha, começou a utilizar na sua avaliação o Axiesterômetro, que anos mais tarde, em 1939, seria apresentado na Inglaterra e chamado de Psicodiagnóstico Miocinético (PMK).

Durante o Franquismo, Emílio Mira y López migrou para América do Sul e após passagens por países como Argentina e Uruguai, nos quais realizou pesquisas com o PMK, estabeleceu-se no Brasil, sendo chamado para coordenar o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) no Rio de Janeiro. No ISOP, sua atividade estava direcionada aos profissionais da condução. Ele fazia a avaliação de características da personalidade por meio do PMK, além da verificação da atenção difusa, visão noturna e ofuscamento.

É nessa época que no Brasil teve início a definição dos aspectos e variáveis que deveriam ser verificados nos condutores. Nas décadas seguintes o modelo de avaliação praticado pelo ISOP se estendeu aos outros estados do Brasil, começando por Minas Gerais. Em 1968, quando se regulamentou a criação dos psicotécnicos nos DETRANs, foi estipulada a avaliação de traços de personalidade, atenção e a realização de uma entrevista.

Assim, é importante mencionar que o modelo importado pelo Brasil, e que deu origem à chamada ‘psicologia do trânsito’ no mundo, considerava o indivíduo como única fonte dos acidentes de trânsito, pois se acreditava que haveria indivíduos mais propensos do que outros a se envolverem nesses acidentes. Tal posição foi muito importante na época, visto que se constituiu no alicerce para que a psicologia do trânsito se desenvolvesse em vários países do mundo, indo além dessa avaliação. Já no Brasil, esse modelo gerou o estigma de que psicologia do trânsito é apenas avaliação psicológica para CNH. Embora muitos colegas possam questionar essa afirmação, o fato é que na consciência coletiva, tanto da população como dos próprios psicólogos, psicologia do trânsito é apenas avaliação para CNH.

Retomando a origem das variáveis que devem ser investigadas nos condutores de veículos automotores, esse modelo de avaliação da personalidade e atenção se manteve ao longo das décadas e, em 1998, com a publicação da Resolução nº80 do CONTRAN acrescentou-se a avaliação da inteligência. Como já mencionado, atualmente vigora a Resolução nº267 que acrescentou a avaliação da memória.

Finalizando, embora várias considerações possam ser feitas sobre a avaliação psicológica de condutores no Brasil, serão resumidos apenas alguns aspectos. Dessa forma, como há muitas décadas, (1) as variáveis psicológicas avaliadas são personalidade e atenção, além de inteligência e memória mais recentemente; (2) embora nosso discurso seja que o profissional da área entende, ou deveria entender, o trânsito como um processo extremamente complexo e multifacetado, a avaliação continua focada apenas no indivíduo, abstendo-se de considerar o ‘ambiente trânsito’ no qual ele pretende se inserir como motorista; (3) não conseguimos avançar no entendimento da avaliação psicológica para condutores como sendo apenas uma parcela da psicologia do trânsito.

 

2.      Considerando o objetivo da avaliação psicológica de condutores como sendo o de verificar as condições psicológicas mínimas dos indivíduos para dirigir, de que forma ela contribui para a segurança no trânsito?

Não temos como mensurar até que ponto nosso trabalho contribui para a segurança no trânsito. Dizer que a avaliação psicológica para condutores contribui para diminuir os acidentes seria um pouco ingênuo, pois a prova está nos números de acidentes com e sem óbito que vemos todos os anos. Também, dizer que esses números poderiam ser ainda maiores se não existisse a avaliação psicológica seria uma ilusão, pois temos como prova que praticamente nenhum país do mundo realiza tal avaliação, e pensando na proporção população/número de veículos/quantidade de acidentes, o número de acidentes no Brasil é consideravelmente maior ao de muitos países do mundo.

Diante disso, acredito que José Sollero Neto, em 1986, deu uma resposta muito interessante sobre a real contribuição da avaliação psicológica para condutores. Em duas publicações realizadas na Revista Psicologia: Ciência e Profissão (Psicologia do Trânsito: As alternativas para o psicólogo’ e ‘Psicologia do Trânsito: A situação atual do uso de testes’) o autor discorre sobre a realidade dessa área naquela época e ao longo dos anos. Dentre suas contribuições mencionou que “os instrumentos de avaliação psicológica não permitem avaliações precisas, e só podem eliminar (temporária ou definitivamente), candidatos no extremo da curva de aptidão”. Esta seja talvez a real contribuição do psicólogo que faz avaliação de condutores, mas para isso é importante que de uma vez por todas o próprio profissional se questione se o que se faz é uma avaliação psicológica propriamente dita, ou apenas a mensuração de algumas características, como atenção, por exemplo, diante da qual a pessoa avaliada deve apresentar um percentil ‘x’. O trabalho realizado ao longo dos anos mais se aproxima de um screening e, portanto, deve ser aprimorado, como qualquer outra prática profissional.

Deve-se ter clareza que a Avaliação Psicológica realizada com condutores deve seguir os preceitos que a consideram como o processo de coleta e interpretaçãode informações psicológicas, resultantes de um conjunto de procedimentos confiáveis que permitem ao Psicólogo avaliar o comportamento. Qualquer prática diferente disto deve ser questionada, pois verificar o percentil de uma determinada pessoa em relação a um dado teste não se configura como avaliação psicológica enquanto processo. Também parece questionável que esse processo possa ocorrer em 30 minutos, ou mesmo em 1h30min de atendimento. Ademais, o importante é que o trabalho seja realizado com qualidade e, principalmente, com ética.

Finalizando e retomando a pergunta feita, é necessário refletir, pois após mais de seis décadas de avaliação de condutores no Brasil, a questão sobre como ela contribui realmente para a segurança no trânsito ainda está presente... e aparentemente continuamos sem uma resposta...