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Psicologia do Trânsito – algumas reflexões

23/11/2012

Por Fernando Pessotto

A psicologia do trânsito é uma área que vem crescendo ao longo dos anos e ganhando visibilidade no meio científico. Diversos trabalhos sobre este tema apresentam a definição de Rozestraten (1988) para a área como sendo o estudo dos comportamentos internos ou externos, conscientes ou não, no ambiente do trânsito. O autor sugere ainda que este é um sistema formado por três subsistemas, a saber, o homem, a via e o veículo, sendo o homem o mais complexo por envolver tanto processos internos como emocionais e psicológicos, compreendidos como subjetivos, como externos. Com base nessa definição, qual seria o papel específico do psicólogo do trânsito?

Hoje, no Brasil, sua atuação se restringe, basicamente, à avaliação do sujeito no processo de obtenção/renovação da CNH, mas que enquadre tem esta avaliação? Esse processo de avaliação parece estar pautado, atualmente, na resolução nº 12/2000 do Conselho Federal de Psicologia (2000), que estabelece que para a obtenção da CNH, o indivíduo deve passar por um processo de avaliação a fim de se conhecer seu perfil psicológico. No entanto, o que é realizado na prática pelos psicólogos da área pode ser considerado um processo de avaliação psicológica amplo, que se utiliza de várias ferramentas, como testes e entrevistas? Com respeito ao perfil do motorista, ele já foi delineado no que se refere às variáveis que necessitam investigação, com base em evidências empíricas que sustentem essa necessidade? Ademais, as publicações da área divulgadas na comunidade científica têm influenciado melhorias no contexto de trânsito?

Deve-se considerar, ainda, que os cursos de graduação em psicologia, no geral, não apresentam disciplinas específicas sobre psicologia do trânsito, resultando assim em uma menor visibilidade à área, já que os graduandos têm poucas oportunidades de estudar e produzir conhecimento que fomente a área. Ao encontro desta realidade de escassez de produção científica da área e das limitações na formação dos psicólogos na graduação, no que diz respeito à atuação do psicólogo do trânsito, foi publicada a Resolução 267/2008 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) estabelecendo que, após 15 de fevereiro de 2013, apenas psicólogos com título de especialista no trânsito reconhecido pelo CFP poderão atuar na área. Em decorrência, cursos de especialização surgiram a fim de possibilitar esta titulação.

Possivelmente em decorrência da situação exposta, pode-se observar um crescimento da área. Esta situação pode ser verificada por meio de uma busca de artigos científicos à Biblioteca Virtual em Saúde (realizado em setembro de 2012 pelo autor do texto), na qual fica evidente um aumento considerável no número de publicações nacionais a partir de 2005, sendo que, anteriormente à este ano, as publicações eram muito escassas.  Entretanto, de fato, cabe uma reflexão acerca da qualidade do conteúdo que está desencadeando a visibilidade.

Qual seria a finalidade em identificar o perfil psicológico do candidato à CNH    e qual sua real aplicabilidade? Os psicólogos peritos em trânsito têm competências técnicas para desenvolver um processo de avaliação psicológica? Ou ainda, os órgãos responsáveis por este processo propiciam condições para que esta seja realizada, desde o custeio até o tempo necessário para sua realização? Considerando que é a partir dessa avaliação que o sujeito é determinado apto ou não para possuir uma CNH, com qual critério técnico/científico está sendo realizada esta avaliação? Em consequência deste panorama, a procura pelos cursos de especialização aumentou devido ao interesse por agregar qualidade à atuação do profissional que já trabalha na área ou simplesmente para cumprir uma formalidade legal? A ementa desses cursos garante a capacitação técnica destes psicólogos na realização dessas avaliações?

Essas indagações podem estar relacionadas ao aumento de publicações sobre o tema, como exposto anteriormente. É interessante notar que, apesar do aumento expressivo de trabalhos científicos na área, pode-se questionar se eles realmente condizem com o escopo da psicologia do trânsito. Alguns são estudos de algum construto ou instrumento específico e se valem de uma amostra de motoristas, mas que possuem limitações extensas quanto à real aplicabilidade no contexto do trânsito, como o uso de amostras pequenas ou por conveniência, apenas. Outros, ainda, se valem de amostras de profissionais ligados ao trânsito para verificar alguns transtornos como o burnout, por exemplo. É questionável se tais pesquisas podem ser consideradas como pertencentes à área específica da psicologia do trânsito, pois contribuem pouco para a compreensão da tríade homem-via-veículo, bem como tendem a explicar pouco a forma como essa sintomatologia afeta essa tríade.

Frente ao exposto e retomando o conceito tríplice proposto por Rozestraten (1988) composto por homem, via e veículo, parece que a indagação sobre qual o papel do psicólogo neste sistema ainda não foi respondida. A visibilidade que a área tem alcançado pode estar relacionada a uma demanda social referente ao aumento de acidentes de trânsito, tendo como causa, sobretudo, o fator humano. Porém, o fator humano não pode ser concebido separadamente. Ao contrário, para a caracterização do contexto do trânsito, os três fatores devem ser analisados em relação. No entanto, ao mesmo tempo em que os acidentes aumentaram, as possibilidades para adquirir um carro também, com ofertas de veículos a preços acessíveis e diminuição sazonal de impostos sobre produtos industrializados (IPI). Tais fenômenos do contexto sociocultural dos quais os motoristas fazem parte estão sendo considerados pela comunidade científica, a fim de compreender como eles impactam na segurança no trânsito? Este parece configurar-se como um campo importante no estudo para a psicologia do trânsito, afinal, afeta justamente a relação tríplice dela.

Entretanto, estudar a relação do sujeito com o meio em que está inserido não caberia à psicologia social ou ainda à ambiental? Ao se considerar esta indicação, pode-se concluir são áreas relacionadas, porém com um recorte específico de contexto. Deste ponto de vista a atuação do psicólogo do trânsito não deveria estar limitada ao processo de obtenção/renovação da CHN ou mudança de categoria, mas deveria ocorrer de forma ampla, inclusive numa fase anterior da significação em se possuir um automóvel. Isto já justificaria uma gama de estudos envolvendo, além dos três fatores, componentes externos a eles.

Estas reflexões têm como objetivo fomentar uma discussão acerca do crescimento e visibilidade da psicologia do trânsito, porém não têm condições de encerrar ou propor um delineamento para a atuação do psicólogo. Embasado na temática deste boletim, faz-se referência, sobretudo, ao processo de avaliação psicológica no contexto do trânsito. Valorizar esta complexidade e ter uma atuação ética neste contexto pode ajudar numa resposta social que é de certa forma esperada, dos psicólogos.

 

Referências

CONTRAN (2008). Resolução nº 267 de 15 de fevereiro 2008. Brasil. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas. [on-line]. Recuperado em 05de setembrode 2012. Disponível emhttp://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_267.pdf.

Conselho Federal de Psicologia (2000). Resolução nº 012 de 20 de Dezembro de 2000. Institui o Manual para Avaliação Psicológica de candidatos à Carteira Nacional de Habilitação e condutores de veículos automotores. [on-line]. Recuperado em 05 de setembro de 2012. Disponível em http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/legislacao.

Rozestraten, R. J. A. (1988). Psicologia do trânsito: conceitos e processos básicos. São Paulo: EPU: Editora da Universidade de São Paulo.