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Justificam-se os construtos psicológicos avaliados no contexto do trânsito?

23/11/2012

Por Lucas de Francisco Carvalho

Reconhecidamente, a avaliação psicológica é um processo largamente utilizado pelos psicólogos, independente do campo de atuação profissional. Isto é, o psicólogo atuante como tal, de um modo ou de outro, por vezes necessita realizar a avaliação psicológica. A despeito das possibilidades reflexivas que o termo avaliação psicológica nos possibilita, o Standards for Educational and Psychological Testing (AERA, APA & NCME, 1999) define esse processo brevemente como aquele que integra as informações provindas de testes psicológicos e outras fontes de informação.

No Brasil, um dos campos de atuação no qual o processo de avaliação deve ocorrer é o da psicologia do trânsito, entre outras possibilidades, para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Em meio a outras deliberações, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503 de 1997) e as resoluções do CONTRAN 51 e 80 de 1998 e 267 de 2008 (que alteram o Código) preveem como obrigatória a avaliação psicológica preliminar para o candidato à primeira habilitação. Vale ressaltar que o Conselho Federal de Psicologia deliberou resoluções que acompanharam de certa forma as resoluções do CONTRAN (Rueda, 2011). Entre elas, ressalta-se a Resolução CFP 012/2000 (instituindo o Manual para avaliação psicológica de candidatos à Carteira Nacional de Habilitação e condutores de veículos automotores), revogada pela Resolução CFP 007/2009 (instituindo normas e procedimentos para avaliação psicológica no contexto do trânsito) e a Resolução CFP 009/2011 (alterando o anexo II da Resolução CFP 007/2009, que tratava do uso de dados normativos para os testes psicológicos quando disponíveis).

Além disso, a Resolução 267 de 2008 estabelece a natureza das técnicas e instrumentos que devem ser utilizados (entrevistas, testes psicológicos, dinâmicas de grupo e escuta e intervenções verbais) e explicitamente quais construtos psicológicos e atributos relacionados devem ser considerados na avaliação preliminar (e eliminatória) realizada. Em síntese, são eles, tomada de informação (atenção, detecção, discriminação e identificação), processamento de informação (orientação espacial, avaliação de distância, conhecimento cognitivo, identificação significativa, inteligência, memória, julgamento ou juízo crítico), tomada de decisão, comportamento (tempo de reação, coordenação viso e áudio-motora, coordenação em quadros motores complexos, aprendizagem, memória motora e capacidade para perceber que as próprias ações correspondem ou não ao que pretendia fazer) e traços de personalidade (equilíbrio entre os diversos aspectos emocionais, e socialização). Ainda, ressalta-se a necessidade de estabelecer a ausência de traços psicopatológicos.

A situação que assim se configura é a verificação do perfil psicológico dos candidatos à CNH a partir de determinados elementos psicológicos. Portanto, cada um dos candidatos deve ser avaliado nos construtos identificados e podem, ou não, atingir pontos de corte adequados para serem considerados aptos para portar a CNH. Esse cenário pressupõe determinados conhecimentos, (a) existem construtos psicológicos relevantes para se considerar alguém com habilitado ao comportamento de dirigir e derivações, (b) os construtos referidos em (a) são conhecidos via pesquisas científicas, (c) existem dados empíricos demonstrando os pontos de corte ótimos para considerar alguém como adequado ou não (ou, especificamente no contexto aqui tratado, apto ou inapto) nas diferentes funções e atributos psicológicos, e (d) existem ferramentas psicológicas no país que avaliam adequadamente esses construtos para o contexto especificado.

O primeiro ponto elencado (a), beira a intuição, isto é, dificilmente alguma atividade humana não implicará uma demanda psicológica e, como consequência, dificilmente o funcionamento psicológico não terá alguma importância nas atividades do dia a dia. Diferentemente, os pontos seguintes (b, c e d) não devem ser considerados no âmbito intuitivo, mas sim acadêmico-científico. O ponto b refere-se à relevância da realização de estudos em um dado contexto com dada população (neste caso, indivíduos avaliados como aptos ou não para portarem a CNH) visando investigar quais são os construtos psicológicos relevantes (teórica e empiricamente) para aquela situação. Esse tipo de estudo faz-se necessário para todo e qualquer caso em que se necessita realizar avaliação psicológica implicando tomadas de decisão. Infelizmente, esses estudos são mais escassos no país do que se espera do ponto de vista científico, o que pode ser notado por meio de levantamentos bibliográficos nas bases de dados nacionais.

O próximo apontamento, c, é dependente do anterior, já que se refere ao estabelecimento de pontos de corte para os construtos reconhecidamente relevantes para o caso específico. Estabelecer pontos de corte demanda, minimamente, estudos com o público-alvo, avaliados nos construtos relevantes, demonstrando quais pontuações dos instrumentos possibilitam discriminar as pessoas que os responderam em relação ao que está sendo avaliado. Por exemplo, caso existam estudos demonstrando que a memória é um construto relevante para discriminar um futuro motorista adequado de um futuro motorista inadequado (isto é, que comete transgressões no contexto do trânsito e/ou exibe maior propensão para se envolver em acidentes), então, deve-se estabelecer pontos de corte (com base nos resultados obtidos pelos respondentes) em que a discriminação dos dois grupos de futuros motoristas é potencializada. Nesse sentido, apesar da importância do ponto b, não é suficiente conhecer quais são os construtos relevantes para uma determinada demanda, é necessário também conhecer os perfis dos diferentes grupos que se deseja discriminar.

Por último, uma vez que já se tenha conhecimento acerca dos construtos relevantes e dos pontos de corte ótimos e perfis esperados nos grupos, deve-se garantir que existam instrumentos avaliando adequadamente os construtos relevantes que compõem os perfis. Apesar da importância desse ponto, é de se esperar que, uma vez alcançados os pontos a, b e c, os instrumentos de avaliação já estejam disponíveis, mesmo porque são essas ferramentas que instrumentalizam os pesquisadores nas pesquisas que embasam os referidos pontos.

Objetivou-se traçar um rápido delineamento em uma perspectiva da ciência psicológica que possibilite responder à pergunta expressa no título deste texto. A problemática aqui levantada, a necessidade de se conhecer os construtos relevantes nas diferentes áreas de atuação do psicólogo, de identificação de pontos de corte e perfis e a garantia de instrumentos com propriedades psicométricas adequadas para esse fim, não é restritiva à avaliação psicológica no contexto do trânsito. Infelizmente, é uma lacuna que permeia diferentes áreas da avaliação psicológica em nosso país. A problemática fica evidente no campo do trânsito, uma vez que há uma demanda (legal) pericial para concessão (ou não) da CNH. Para além do parâmetro legal, há o parâmetro social, de um lado, uma sociedade em que cada vez mais as dificuldades com motoristas transgressores se fazem presentes e, de outro, o trabalho fornecido pelo psicólogo que deve cada vez mais fundamentar-se em evidências e no rigor científico.

 

Referências

American Educational Research Association, American Psychological Association, Nacional Council on Measurement in Education (1999). Standards for educational and psychological testing. Washington, DC: American Educational Research Association.

Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 (1997). Dispõe sobre o código de trânsito brasileiro. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503.htm .

Resolução CFP 012, de 20 de dezembro de 2000 (2000). Dispõe sobre o Manual para avaliação psicológica de candidatos à Carteira Nacional de Habilitação e condutores de veículos automotores. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www.pol.org.br/legislacao/pdf/resolucao2000_12.pdf .

Resolução CFP 007, de 04 de agosto de 2009 (2009). Dispõe sobre normas e procedimentos para a avaliação psicológica no contexto do trânsito. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www.crpsp.org.br/portal/orientacao/resolucoes_cfp/fr_cfp_007-09.aspx .

Resolução CFP 009, de 19 de maio de 2011 (2011). Dispõe sobre alteração do anexo II da Resolução CFP 07/2009. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2011/05/resolucao2011_009.pdf .

Resolução CONTRAN 51, de 21 de maio de 1998 (1998). Dispõe sobre os exames de aptidão física e mental e os exames de avaliação psicológica. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www3.detran.rs.gov.br/cetran/resolucoes_contran/resolucao_051_1998.pdf .

Resolução CONTRAN 80, de 19 de novembro de 1998 (1998). Dispõe sobre os exames de aptidão física e mental e os exames de avaliação psicológica. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www.pr.gov.br/mtm/legislacao/resolucoes/resolucao080.htm .

Resolução CONTRAN 267, de 15 de fevereiro de 2008 (2008). Dispõe sobre os exames de aptidão física e mental e os exames de avaliação psicológica. Acessado em 05 de setembro de 2012 pelo link http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_267.pdf .

Rueda, F. J. M. (2011). Psicologia do trânsito ou avaliação psicológica do trânsito: faz-se distinção no Brasil? Em: Ano da Avaliação Psicológica: textos geradores. Brasília: Conselho Federal de Psicologia.