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A necessidade da avaliação psicológica de crianças

04/03/2013

Por Rodolfo A. M. Ambiel

A necessidade da avaliação psicológica de crianças é uma demanda frequentemente presente na prática profissional do psicólogo, especialmente nos contextos clínico e educacional. Para além do aspecto diagnóstico, a avalição infantil pode ter um caráter preventivo importante, uma vez que possibilita a identificação precoce de condições que podem trazer consequências para o desenvolvimento ao longo da vida. Nesta entrevista, o Dr. José Maurício Haas Bueno, da Universidade Federal de Pernambuco, explica as especificidades do processo de avaliação com crianças, refletindo sobre as condições atuais e necessidades futuras de desenvolvimento técnico dos instrumentos.

1. Quando se trata de avaliação psicológica infantil, quais são as especificidades do processo?

São muitas. Por exemplo, a criança não é responsável por si mesma, o que torna necessário o contato com seus pais ou responsáveis legais e pode gerar ansiedade sobre o que o psicólogo irá contar para eles. Outra especificidade é que ela pode estar em diferentes etapas do desenvolvimento, cognitivo, emocional, motor, o que devemos levar em consideração quando nos comunicamos com ela e quando escolhemos técnicas para avaliá-la. A leitura, por exemplo, pode ser um requisito para a aplicação de testes de autorrelato. Outro aspecto, ainda, é a necessidade de materiais e estrutura física específicos. São necessários uma caixa de brinquedos, com jogos, uma família de bonecos, material de papelaria, entre outros. Também são necessários testes específicos para diferentes fases do desenvolvimento e um ambiente que permita que a criança se expresse na linguagem dela e ao mesmo tempo seja de fácil limpeza, por exemplo. Há outras especificidades que estão associadas ao próprio motivo da avaliação. Por exemplo, casos de abuso sexual em que a avaliação da criança é permeada tanto pela necessidade de obter informações (tanto para o diagnóstico quanto para providências legais) quanto pela necessidade de preservar a intimidade e a integridade física e psicológica da criança, isto é, de não “revitimizá-la” com perguntas contundentes e invasivas. Mesmo que não seja em casos tão graves, os pais ou responsáveis sempre têm a ver com os sintomas e podem se situar em qualquer ponto entre a abertura à colaboração ou resistência extrema. Por tudo isso, pode-se perceber que a avaliação psicológica infantil tem características bastante próprias em todos os sentidos.

2. Como o Dr. avalia as condições dos instrumentos de avaliação infantil disponíveis atualmente para uso?

Ainda são muito poucos para as necessidades e os estudos de validade geralmente são realizados com populações específicas. São necessários, por exemplo, mais escalas de desenvolvimento com estudos psicométricos, testes neuropsicológicos, cognitivos (para avaliação de outras funções além da inteligência), testes de personalidade, entre outros construtos. Além disso, há necessidade de estudos psicométricos e de padronização para as diferentes regiões brasileiras, cuja diversidade cultural é imensa. Nesse sentido, WISC III, por exemplo, foi validado com crianças da cidade de Pelotas-RS. Ótimo que tenha sido, de alguma forma, validado no Brasil. Os autores dos estudos brasileiros e a editora proporcionaram um grande avanço em relação à edição anterior. Mas, como utilizá-lo em outras regiões, especialmente norte e nordeste, com escalas verbais que sabidamente têm grande influência cultural? Além disso, é preciso, por exemplo, desenvolver testes que envolvam heteroavaliação, isto é, além da obtenção de respostas por parte da própria criança, os instrumentos também podem colher informações por parte de pessoas que convivem com ela, como pais e professores, por exemplo. Enfim, é preciso reconhecer que muito se avançou na área da testagem psicológica, mas também que muito ainda há por fazer.

3. Além dos testes, quais técnicas são comumente usadas?

Bem, as técnicas principais, além da testagem, são observações e entrevistas. Com crianças, é imprescindível a realização de entrevista com um adulto responsável por ela, ou que possa fornecer informações sobre a criança. Há muitas técnicas de entrevista, que devem ser escolhidas de acordo com a necessidade de cada caso. Uma das mais comuns é a anamnese, que tem por objetivo fazer um levantamento detalhado da história da criança. Essa história começa mesmo antes da criança nascer, com informações sobre sua concepção, gravidez e parto, por isso, é comumente realizada com os pais, responsáveis, ou com quem possa fornecer essas informações. Mas além das entrevistas, muitas vezes são empregadas observações naturalísticas. Por exemplo, no contexto clínico tradicional há a “hora do jogo diagnóstica”, que consiste em observar (ainda que essa observação possa ser participativa) a criança em atividades lúdicas. Por isso, são oferecidos brinquedos e materiais de interesse da criança (como papéis, lápis de cor, etc.) para que ela escolha e desenvolva uma atividade, com ou sem a participação do psicólogo. Em outros casos, essa observação pode ser realizada no próprio ambiente da criança, como a escola, instituições, em casa. De qualquer forma, a observação situacional pode trazer boas informações sobre o funcionamento psicológico da criança. Além disso, é sempre bom lembrar que pode ser necessária a avaliação de aspectos não-psicológicos e que, portanto, devem ser realizadas por outros profissionais, como médicos, fonoaudiólogos, entre outros, com os quais o psicólogo deve estar em contato, preferencialmente para a realização de um trabalho em conjunto.

4. Quais são os construtos psicológicos geralmente avaliados?

São muitos e variados. Na verdade, esses construtos não diferem muito dos adultos, embora alguns possibilitem diagnósticos predominantemente na infância, como dislexia, déficit de atenção e hiperatividade, que têm um grande impacto no desempenho escolar. Mas, dependendo da queixa, pode ser necessário avaliar alguns entre uma variedade muito grande de construtos. Podem ser processos psicológicos mais básicos como atenção, memória e diversos tipos de raciocínio; ou quadros mais complexos, como dislexia, transtorno do déficit de atenção com ou sem hiperatividade, entre outros. Podem ser construtos mais relacionais, como habilidades sociais, apego, estilos parentais, bullying; construtos relacionados ao humor (como a depressão), características de personalidade (como a dependência, o antissocial, entre outros), etc. Além disso, por vezes, é necessário avaliar o contexto mais social em que a criança vive, condições de negligência parental. Acho que não é possível especificar o que é avaliado, pois isso varia em função do caso. O psicólogo deve estar capacitado para identificar um conjunto de variáveis (construtos), cuja avaliação é relevante para cada caso.

5. Há alguma demanda que seja mais frequente em relação ao processo psicodiagnóstico de crianças?

Em clínicas-escola geralmente os encaminhamentos ou procuras por atendimento têm alguma relação com o desempenho escolar. O baixo rendimento escolar pode ser causado por uma ampla variedade de fenômenos, mas geralmente, quando o rendimento cai é que as preocupações se tornam maiores, desencadeando a procura por algum tipo de ajuda. Nem sempre a psicologia é a primeira a ser procurada, mas, algum encaminhamento, é bastante provável que os pais acabem procurando um psicólogo.

6. Qual o papel da família no processo?

É bastante importante, tanto no sentido de fornecer informações, como disse anteriormente, como no sentido da disponibilidade para levar a criança para o atendimento e participar do processo. Em boa parte, é pelos olhos dos pais que as crianças vão formar seu julgamento sobre a importância e a necessidade da avaliação e do tratamento. Outra condição importante é a qualidade da vinculação com o terapeuta, mas essa vinculação só ocorrerá se os pais, de várias formas, permitirem. É importante ressaltar que o psicólogo também tem um compromisso com os pais, qual seja o de avaliar a criança e de comunicar o resultado de sua avaliação a eles, explicando, justificando e propondo o encaminhamento que se fizer necessário para cada caso.

7. Quais são as perspectivas e desafios futuros em relação às pesquisas sobre a avaliação psicológica infantil, especialmente com relação à atualização de instrumentos já tradicionais e à validação de novos?

São vários desafios, há muito que se fazer. Como disse anteriormente, os instrumentos disponíveis atualmente para utilização ainda são muito escassos e os que existem são deficitários em termos de validade e padronização. Então, é preciso validar instrumentos para uma variedade de construtos bem mais ampla do que a existente atualmente, é necessário validar instrumentos já existentes ou novos para contextos diferentes, como para crianças com necessidades especiais, por exemplo. É necessário desenvolver instrumentos de avaliação mediados pelo computador, que são altamente atrativos para as crianças e incluem possibilidades mais vantajosas em relação ao formato lápis-papel. Algumas dessas vantagens é a possibilidade de trabalhar com movimento, contagens de tempo automatizadas (mais precisas) e também com um cenário visual mais atrativo para o público infantil. Também há necessidade de padronizar instrumentos para as diferentes realidades sociais, econômicas e culturais encontradas nas diferentes regiões do país. A região norte, por exemplo, ainda é muito negligenciada quando se padroniza um instrumento.

8. Uma de suas linhas de pesquisa referem-se à avaliação da emoção de crianças. O Dr. poderia contar um pouco esses estudos? Em que sentido eles podem auxiliar na prática da avaliação clínica infantil?

Minha experiência se deu com a construção de um instrumento para avaliação da inteligência emocional em crianças. Essa avaliação se mostrou bastante relacionada a outros tipos de inteligência como era de se esperar, com desempenho escolar e com traços de personalidade, especialmente com o neuroticismo. Portanto, é um teste que pode fornecer informações muito importantes não apenas sobre a inteligência emocional em si, mas também em relação a essas outras variáveis que se mostraram relacionadas à inteligência emocional. Por exemplo, uma criança com alta inteligência emocional, é mais provável que tenha também resultados elevados em outros tipos de inteligência, que se saia bem na escola e que sua personalidade seja mais estável do que instável emocionalmente. Já uma criança com baixa inteligência emocional tende a apresentar também resultados mais baixos em outros tipos de inteligência, a ter baixo rendimento escolar e a ser mais instável emocionalmente. Além disso, é um teste bastante lúdico, construído com base em pequenas histórias que são contadas para as crianças e sobre as quais as crianças são questionadas quanto à percepção sobre as emoções experimentadas por um determinado personagem, sobre como ela compreende o contexto emocional da história e sobre como as emoções poderiam ser controladas ou expressadas de forma apropriada em cada história. Então, é um instrumento que pode proporcionar uma avaliação bastante lúdica e também informativa para o psicólogo.